No tempo das pastorinhas
“As pastorinhas, muito bem estudadas pelo mestre Mario Ypiranga Monteiro, circulavam com desenvoltura depois de dias de ensaios. E eram muitas e bem preparadas.
Não quero ir longe, no passado distante, mas recuperar um pouco daquela cidade acanhada e que deve ter sido gostosa de viver. Por isso, fui rever anotações antigas que registram os natais de 1910 a 1918, por entre folguedos que já não vemos. Na época do Natal de Jesus, comemorado em quase todas as partes do mundo conforme a crença de cada povo, na Manaus de cem anos passados havia festejos peculiares pelas ruas, nas igrejas católicas e batistas, nas casas de residência, com bairros embandeirados e cantoria de fé e alegria.
As pastorinhas, muito bem estudadas pelo mestre Mario Ypiranga Monteiro, sempre atento e reconhecido pesquisador dos eventos populares, circulavam com desenvoltura depois de dias de ensaios. E eram muitas e bem preparadas. Para que se tenha uma ideia havia grupos pelos bairros- de São Raimundo Nonnato, Cachoeirinha, dos Educados e dos Tócos, por exemplo, dentre tantos que movimentavam as gerações e alegravam a população.
As senhoras das famílias portuguesas que aqui residiam em grande quantidade e influência, faziam quermesse e árvore de Natal na Praça da Constituição, angariando recursos para os desvalidos da Guerra. Era tudo bem organizado pela Comissão Patriótica Portuguesa tendo à frente Lily de Rego, Palmyra Mendonça e Maria Salomé dos Santos com apoio do comércio local, realizando apresentações de orquestra regida pelo maestro João Donizetti. Dava-se um festival com alunas no Instituto Benjamin Constant, ricamente preparado e o presépio de José Lopes da Silva, na Rua Xavier de Mendonça, causava belo impacto.
Surpreendente foi o drama “Natal de Jesus”, escrito por Joaquim Gondim e Grijalva Antony com música de Mozart Donizetti. Uma pastoral em dois atos com duas apoteoses na adoração de Jesus, apresentado com orquestra de vinte e cinco músicos, e em cena com onze crianças e vinte e nove senhoritas.
Havia ampla mobilização da população. Os bondes elétricos aumentavam a frequência, passavam a circular em horário especial e ampliado. Muitos acorriam à festa artística da Igreja de São Sebastião organizada pela comunidade. Luxo era a representação do drama “A Pastoral”, de autoria de Coelho Neto com todas as cenas da evangelização cristã, no Teatro Amazonas. Na Igreja de Nossa Senhora dos Remédios dava-se missa solene. Na catedral, desde as festas da santa padroeira eram celebradas missas cantadas. Bem concorrida e comentada aos quatro cantos era a missa Campal na Praça de São João e no bairro do Girão, por traz do seringal Miry. O ponto alto, entretanto, era a Missa da Meia Noite na igreja de Nossa Senhora da Conceição para a qual acorriam todas as camadas da população movidas pela fé que as reunia nos festejos santos e profanos.
No ano de 1918 os destaques foram a inauguração do presépio “Estrela do Universo”, na Rua Luiz Antony montado pelos irmãos Ferreira Caboclo; o presépio a “Gnita da Nair”, na casa do major Ermelindo Silva na Rua Ramos Ferreira com a Avenida 13 de M’aio; a Árvore de Natal erguida pelo Grupo Recreativo Português; e as cantatas realizadas pela União da Mocidade Batista com palestras de Antônio Leão e de professores do Seminário Batista de Pernambuco, no templo da Avenida Joaquim Nabuco, feitas com esmero e emoção.
Em todos os recantos as pastorinhas tomavam o lugar principal pelo interesse do público. Eram as “Filhas de David”, na casa de Luiz França o “Triunfo e Paz” de Antônia Lobão; as “Jovens Flores”, na casa de Alexandre Freyre; as : “Estrela do Oriente”, na casa de Francisco Horácio de Medeiros; ás “Filhas de Judá”, na casa de Anacleto José dos Reis; e, as do cordão “Beija Flor”, na calçada do Jornal do Commércio.
As modinhas, os cajados e os pandeiros das pastorinhas foram silenciando com o tempo e quase não existem mais, cem anos depois daquela euforia natalina que era misto de universal e cabocla.