Robério Braga
Coleção História do Amazonas
Caderno 4
Que histórias poderiam contar as paredes mudas e frias do “Palácio Rio Negro” decorridos tantos anos de vida a ver passar ocupantes vários, por razões as mais diversas, nem sempre legítimas e com aprovação democrática do povo, ou sem que, por vontade soberana do eleitor, tenham permanecido no poder. Quantas… se falassem livres como os condores que vencem os céus ou a sábia gaivota que, afinal, aprendeu a voar e ganhou dimensões de inteira liberdade como nos diz com sabedoria Richard Bach em seu “Fernão Capelo Gaivota” (1).
Como elas não falam, nada lhes posso dizer do que testemunharam de 1918 aos dias que correm, nos camarins do poder, nos seus porões, porque nele se encontra instalado o palácio do governo, hoje destinado aos despachos, outrora também residência oficial. Sei que já foi habitado por líderes carismáticos, poeta-político, militares, eleitos do povo, jovens, decrépitos, alheios, raivosos, odientos, honestos, azarões, arcaicos, democratas por excelência, ditadores, revolucionários, ladrões, esmerados administradores, republicanos, conservadores, liberais, sociais-democratas, chefes de oligarquias e feudos, udenistas, petebistas, pessedistas, interinos, parasitas e operosos gestores da coisa pública. Uma única mulher o ocupou com poderes de governo, ainda que de forma transitória, ao longo destes anos.
Quantos o têm desejado. Uns por aspiração suprema da realização do ideal de servir; outros para dali emanar ordens, para servirem-se do poder. Ainda será assim por muitos anos.
Vamos à sua história, pura e simples, e dos que o construíram porque do que tem testemunhado fez voto de sigilo eterno e nada se pode saber, nem se consegue decifrar ainda que, ouvido posto em suas paredes no silêncio das madrugadas, mão acariciando sua pesada porta de madeira maciça ou seu portão de ferro fundido com detalhes requintados, ou mesmo relaxando em suas varandas toda de palha. Era desprovida de canalização de água e esgoto, quase não possuía calçamento e a iluminação se fazia por precários e insuficientes lampiões a querosene, em número total de 120. O abastecimento de gêneros comestíveis era feito por importação de algumas casas comerciais quase que exclusivamente de portugueses, e o mais era adquirido, à falta de um mercado público, diretamente o alemão Waldemar Scholz sob as ordens do engenheiro Henri Joseph Moers. Residência do empresário que em 1903 já estava instalado com seu armazém e escritório de representação na Rua dos Remédios (2), comprando e beneficiando borracha para exportação com a firma “Scholz & Cia”. Colecionador de aves e apaixonado por cavalos, em 1906 integrou pela primeira vez a diretoria da Associação Comercial do Amazonas (3) liderando um grande grupo de alemães aqui estabelecidos. Era presidente da entidade Joaquim Nunes de Lima. Afastado das funções no ano seguinte, retornou em 1908 como presidente, cargo que exerceu seguidamente até 1911.
Sua gestão presidencial foi inovadora na secular instituição de defesa dos interesses econômicos do Amazonas. Reformou o Estatuto ampliando as funções do órgão, criando delegacias no interior, a biblioteca e a revista da ACA cujo primeiro número circulou a 5 de julho de 1908. enfrentou momentos de graves dificuldades com o telégrafo de cabo subfluvial constantemente em pane, e com a administração inglesa postada na “Manáos Habour” gerenciadora do porto flutuante por onde fluía toda a atividade comercial da cidade. Como se não bastasse a falta de circulação de moeda e a “débâcle” da borracha, se viu às voltas com o movimento de trabalhadores em agosto de 1908 reivindicando a redução justa da jornada de trabalho. Era a luta operária encetada em São Paulo em abril de 1906 quando da realização do 1º Congresso Operário Brasileiro que desaguou nas graves de 1907, chegando à taba.
Com ele a Associação esteve na Exposição Internacional da Borracha realizada em Londres, com requintes de um stand de 100m2, farto material de propaganda e dois delegados: Nicolau Witte e Rafael Benoliel. Era o confronto com a borracha do Ceilão, a princípio animador, mas que ao correr do tempo serviu para comprovar que perdermos a hegemonia do produto, as condições de competitividade e o mercado internacional. Ainda assim não negou apoio à criação da Escola Comercial “Sólon de Lucena”, iniciativa do prefeito Agnello Bittencourt desejoso de preparar pessoal qualificado para os serviços comerciais.
O seu império, ainda que próspero, não resistiu à queda da borracha. Tão graves foram as conseqüências da crise que não concluiu seu palacete tendo que hipotecá-lo a Luiz da Silva Gomes por 400 contos de réis a serem pagos em um ano. Não conseguindo honrar o compromisso assumido em 1911, arrematou o belo edifício em leilão público, tentando de tudo para salvá-lo. Não conseguiu pagar a hipoteca, ficando o imóvel transferido ao credor.
Luiz da Silva Gomes, comerciante português nascido na Vila dos Arcos da Val-de-Vez de onde saiu em 1864 com destino ao Pará, chegou a Manaus em 1870 logo iniciando negócios no Rio Madeira e na cidade de Canutama, era o novo dono do palacete. Chefe político em São Luiz de Cassianã, grande localidade do município de Lábrea, integrava o Partido Republicano Federal pelo qual foi depois candidato ao Senado Federal fio quem premido pelas mesmas circunstâncias financeiras iniciou negociações com o governo do Estado mediante aluguel e depois venda em 30 de janeiro de 1918 por 200:000$000 quando o valor real da época, estimado em escritura pública era de 900:000$000. O governo passou então a ter sede definitiva, condigna. O governador Pedro Bacellar advindo da região do Madeira onde fora prefeito de Humaitá efetivava a transação considerando-a lucrativa para os cofres públicos.
Operoso em seus negócios, Luiz Gomes chegou a receber Medalha de Prata, cunhada em Florença, quando da realização do I Congresso Comercial, Industrial e Agrícola de 1910 pelos “mapas de seus seringais do Uaquiri e Ituxi”, tal o requinte e detalhes com que os apresentou.
Novo destino estava conferido ao palácio dos sonhos alemães produzido pela audácia de Scholz que, nestes tempos, tendo encerrado a firma, voltara para a Europa. Da elite de posses para a elite política, cedera lugar para o passeio do povo, abrindo os portões a quem o procurasse na esperança de ser reconhecido como detentor do poder ali instalado. Homens e mulheres, às vezes crianças inocentes, queimadas pelo sol, mãos em calo pelo trabalho diário, uns a esmolar a ajuda do pão nosso de cada dia, outros a buscar justiça com sede de quem confia. Há os que vagam incertos a espera de atenção: os que pretendem voltar à roça de onde saíram em busca de melhores dias movidos pela esperança que anima os crédulos. Os donos da terra senhores das matas indígenas de várias nações, poucas vezes estiveram em seus salões, mas nunca ocuparam o poder de mando e, solenes, desceram as escadarias em respeitosa marcha de causar espanto a brancos que o habitam sem desvelo.
Houve até quem ali nascesse e quem, obrigado pelas circunstâncias de mal súbito, tenha recebido intervenção cirúrgica sob os olhares do governador, também cirurgião, nascido na Bahia de todos os Santos e Orixás.
Recebeu príncipes, embaixadores, presidentes da República, políticos de escol, cônsules, embaixatrizes, intelectuais, artistas, sonhadores e aproveitadores, foi palco de festas populares, ovações em delírio, banquetes regados a bebidas finas e saraus luxuosos. Não faz muito foi aberto para receber em traje de gala todas as personalidades mais ilustre da sociedade requintada. Nunca deve ter estado a pão e água, como seus vizinhos do igarapé que contam estrelas e esperam amanhecer e anoitecem o dia e novamente se alimentam com a esperança do amanhã.
Está quase sempre sob a mira de lentes de turistas de todas as partes do mundo que nos visitam. Alemãs, japoneses, norte-americanos, belgas, italianos enfim, todos se apaixonam por ele e registram o contraste que espelha o nosso subdesenvolvimento.
Com o tempo perdeu as cores e os adornos originais não recompostos na restauração de 1982 porque não mais condizentes com as funções que lhe compete nos dias atuais. Os lustres de bronze, os móveis de estilho, os tapetes, as árvores, a casa dos empregados, a garagem, o porto das lanchas, os largo frisos de madeira, os ladrilhos importados, cederam lugar a peças mais sóbrias e adequações indispensáveis ao seu funcionamento. Só o soalho de acapu e pau amarelo resistiu, pisoteado, a ver quedarem as janelas e portas com venezianas e vidraças do conjunto de pedra e tijolo construído em terreno de mais de 41 metros de frente com jardins na face anterior, orçado ao tempo de sua edificação em 480 contos de réis.
Não há como dar função exata a seus salões nos dias de agora, porque quase sempre estão em mudança tão acanhado está para fazer frente às novas obrigações. Continua caiado de cinza claro e dele não se discute a cor. Solene, seu esplendor dependerá sempre do verdadeiro brilho de seus senhores. Bem que desejamos que brilhe sempre, na rua Brasileira, depois de Fileto Pires, Ephigênio Salles, Dorval Porto e Juarez Távora, para nós, a avenida Sete de Setembro (4) a desembocar nos Educandos por sobre a ponte Benjamin de Constant, posto a contemplar os súditos com os encargos de descortinar o futuro sobre quantos teimam em aqui permanecer por amor à terra.
NOTAS
(1) Bach, Richard. A História de Fernão Capelo Gaivota. Nórdica, Rio. 1970.
(2) Rua dos Remédios. Bairro dos Remédios, atual Rua de Doutor Miranda Leão.
(3) Associação Comercial do Amazonas. Órgão de classe do empresariado fundado em 1871 por José Coelho de Miranda Leão. Permanece em funcionamento sob a presidência de Douglas Souza Lima (1992).
(4) Denominações conferidas a avenida Sete de Setembro, ao longo dos anos, conforme registro de Mário Ypiranga Monteiro.
Bibliografia
BITTENCOURT, Agnello. Dicionário Amazonense de Biografias. Vultos do passado. Academia Amazonense de Letras, Ed. Conquista, Rio. 1973.
BRAGA, Robério. Palácio Rio Negro. Série Patrimônio, nº 2. Edição Comemorativa da Restauração. Imprensa Oficial. Manaus, 1982.
MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. O Jornal. Manaus 1969. Edição Comemorativa do Tricentenário da Cidade.
Robério dos Santos Pereira Braga, nasceu em Manaus a 14 de agosto de 1951, filho da professora Sebastiana dos Santos Pereira Braga e do político, líder sindical e marítimo, e jornalista Lourenço da Silva Braga. É advogado formado pela Universidade do Amazonas em 1974 e pós – graduado em Administração de Política Cultural pela Universidade de Brasília e Organização dos Estados Americanos – OEA, Museólogo e Professor universitário na área jurídica. Já exerceu diversos cargos públicos como Secretário de Estado do Gabinete do Vice-Governador, Chefe de Gabinete do Prefeito de Manaus, Diretor da Fundação Cultural do Amazonas, Regional da Amazônia da Fundação Joaquim Nabuco.
Membro de diversas instituições culturais do Estado, no país e no exterior, foi Presidente do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, Secretário da União Brasileira de Escritores, fundador e primeiro Presidente da Academia Amazonense Maçônica de Letras. É Vice-Presidente da Academia Amazonense de Letras e das entidades culturais.
Conferencista, principalmente sobre temas amazônicos, política cultural, turismo e desenvolvimento regional, é autor de inúmeros títulos e prefácios de obras de diversos autores, entre elas a 2ª edição da “História do Amazonas” do professor Arthur Cezar Ferreira Reis.
É vereador à Câmara Municipal de Manaus, em seu segundo mandato, onde exerce liderança de partido, tendo sido Presidente da Comissão de Constituição e Justiça por quatro anos, Relator Geral da Lei Orgânica de Manaus e autor de diversas leis de interesse público, e principalmente de toda a estrutura legal para defesa do patrimônio histórico da cidade.