Manaus – sua Fundação e seu Fundador
Arthur Cezar Ferreira Reis
As cidades brasileiras resultaram, no período colonial, de capelas, missões, aldeias montadas ao longo do litoral para negócio da pesca, fazendas de criar, estabelecimentos agrários, arraiais de mineração, fortificações e acampamentos militares. Muito poucos formam os núcleos urbanos estabelecidos com o objetivo imediatista de centro político, criado para nele situar-se a população de vida urbana. Como conseqüência, houve também muito pouco planejamento. Citam-se os episódios. O número dos núcleos que os colonizadores fixaram, na costa e na hinterlandia, por isso mesmo, se não se contam pelos dedos das mãos, não somam expressivamente. A história de como surgiram e valeram à empresa da ocupação e da permanência dos homens que chegavam da Europa e da sociedade solidária que, pela mestiçagem, começara a elaborar-se com certa velocidade, não é uma história que se tenha escrito. Os ensaios a respeito são poucos. Escreveu-se sobre um certo contingente de cidades ou municípios, na suas deseventuras e heroísmos, sem que tenha ocorrido o propósito de obra global de interpretação do fenômeno urbano no Brasil.
No particular da Amazônia, além do que escrevi acerca dos municípios paraenses, na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, há estudo monumental de Palma Muniz nos Anais da Biblioteca e Arquivo do Pará. Pierre Defontaines, em ligeiro artigo, examinou, em França, o assunto. Significa tudo isso apenas contribuição inicial, que demanda continuação, pesquisa mais minuciosa e exame detido para as conclusões necessárias.
Afirmei que as cidades, em suas origens, podem procurar essas raízes em estabelecimentos militares – fortificações e acampamentos. Belém, São Luiz, Fortaleza, Natal, Rio de Janeiro, Salvador, Rio Grande, para referir as mais importantes, são exemplo típico. Manaus teve a mesma origem. Emergiu, lentamente, de um fortim, o de São José do Rio Negro, sobre cujas origens tanto se vem escrevendo e cujo centenário, o terceiro, festejamos no ano em curso.
Seu fundador quem teria sido realmente? Francisco da Mota Falcão, como registraram os primeiros cronistas dos fastos portugueses na região ou seu filho Manoel da Mota Siqueira? A documentação, que explicará, pondo termo á dívida? Existe essa documentação, capaz de por termo á dívida ou trará mais incerteza? O terceiro centenário estará sendo comemorado justamente ou a data 1669 será presunção ou detalhe impossível de aceitar ou sobre que haja menos dúvidas?
Num ensaio acerca das “Fortificações no Amazonas”, que escrevi a pedido de Rodrigo Melo Franco de Andrade, para completar ensaio anterior de Arthur Viana, que escrevera sobre as fortificações no Pará, ensaio, o meu, que reeditei nas coleções do Governo do Amazonas em 1966, quando estive à frente dos destinos da minha terra, fiz o resumo da questão. Anteriormente, em “Manaus e Outras Vilas”, separata da Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, tracei a primeira tentativa histórica a respeito da matéria. Compulsei os cronistas e examinei a documentação, parca documentação existente, para as conclusões a que cheguei. E essa permitira que concordasse em que Francisco da Mota Falcão fora o fundador ou, pelo menos, quem iniciara a fortificação.
Em correspondência com Alberto Iria, diretor do Arquivo Histórico do Ultramar e meu companheiro na Junta de História do Ultramar, procurei obter documentação que autorizasse a certeza do acontecimento nas minúcias que se fazia necessário conhecer. O resultado não foi favorável, mas nem por isso deixou de permitir alguma novidade para a compreensão e o esclarecimento do episódio.na base desse e de outros elementos, passaremos a registrar o que nos parece que deva ser considerado como mais autêntico acerca da fundação de Manaus e de seu fundador.
Comecemos recordando que estava na política português, em seu império ultramarino, a preservação do mesmo, a todo custo. Não havia possibilidade de nos debates governamentais, aceitar-se, mesmo que fosse para puro exame de circunstâncias, a possibilidade da perda de espaços, resultantes da expansão. Na execução da política de preservação e de domínio continuado e ampliado incessantemente, o que se determinava era, ou às claras, abertamente, sem subterfúgios de qualquer espécie, a ordem de prosseguir e de defender, ou a de ampliar as bases físicas, territoriais, usando os métodos nem sempre muito louváveis, mas rendosos, convenhamos sob certo sentido moral, sem que da medida pudesse ser acusado o governo de Lisboa. A ampliação da fronteira marítima ou terrestre deveria ser sempre aumentada.
Ora, para que fora realista essa política, ou meios eram os mais variados. As missões religiosas serviam como um dos instrumentos dessa política. Como a ação militar, através dos acampamentos, dos fortins, dos reconhecimento realizados sorrateiramente. Por fim, a proclamação regular da constitucionalidade ou legalidade do movimento, pela criação da unidade administrativa, que se fazia institucional, com a presença de autoridades civis, religiosas, militares. Nesse particular, os português não tiveram similares nos outros povos que se arriscaram ao negócio colonial. Foram únicos, ou antes, admiráveis, como rapidez de movimentos, ousadia, habilidade, decisão. Ingleses, holandeses, franceses e espanhóis montaram impérios imensamente grandes, nas Américas, na África e no Oriente. Nenhum deles teve, no entanto, os êxitos imediatos e se mostrou com aqueles atributos de que os portugueses se podem orgulhar muito sincerimoniosamente, diga-se a verdade e usa-se o termo próprio.
No caso particular da Amazônia, enfrentando franceses, ingleses e holandeses que pretendiam fixar-se com as suas feitorias coloniais, não abriram mão da Amazônia. Pela linha de Tordesilhas, a Amazônia seria, em sua quase totalidade, espaço espanhol. Os ingleses, os holandeses e, em princípio, também os franceses, haviam desconhecido as regras do jogo de Tordesilhas e tentavam a posse, que se transformaria rapidamente em domínio se os portugueses, ou melhor, os luso-brasileiros, pois que da partida militar participaram os mestiços da sociedade solidária que se elaborava no Brasil, mestiços nordestinos, recrutados em Pernambuco, não se houvessem oposto com a maior coragem e com esse elemento indispensável em quem tem as responsabilidades do poder e da coisa pública, os interesses coletivos: decisão pronta, enérgica, em profundidade.
O fortim do Presépio e os estabelecimentos religiosos, civis e militares, que se foram estabelecendo estavam, portanto, dentro daquela decisão precisa. Os estrangeiros foram corridos. Posteriormente, os espanhóis que alegavam os títulos caducos de Tordesilhas, também foram postos em retirada, desse modo, com rapidez e com segurança, a Amazônia, de que tanto nos ufanamos ainda como área em ser, natureza a exigir a presença humana, que a enfrenta e possua efetivamente, passou a integrar o império que se construía no Brasil costeiro e agora interior.
O Presépio foi o ponto de partida. Como já escrevi, de lá partiu todo o esforço, a seiva para criar a Amazônia portuguesa, posteriormente brasileira.
Como conseqüência da expansão, que a motivação econômica, representada pelas “drogas do sertão”, de certo modo explicava a rapidez dos movimentos dos colonos, foi necessário estabelecer as condições de segurança, essenciais a que essa obra de penetração, de conquista e de domínio se tornasse real, sem os riscos, que os conflitos com os elementos indígenas em alguns trechos da hinterlandia estavam provocando e com estrangeiros que teimava em atingir a região e nela plantar-se para seus investimentos políticos. Espanhóis pelo Solimões e holandeses pelo rio Branco, constituíram esse elemento perturbador, que se fazia necessário conter numa lição exemplar. O reconhecimento continuado do amplo território, de seus rios e de sua natureza tropical, que despertava o maior interesse no mercado europeu, e a que os luso-brasileiros compareciam cada vez mas intensamente, indicava às autoridades a urgência de medidas acauteladoras.
Quem lê os informes dos governantes de então ou os cronistas que registraram os fastos, pode ter a certeza da preocupação que provocaria a Amazônia interior, a que denominamos hoje a Amazônia Ocidental. Alguns governantes já haviam penetrado muito além do “Presépio para ver, com olhos bem abertos, o que estava sucedendo e o que era preciso fazer de imediato. Há toda uma vasta correspondência com Lisboa que autoriza a afirmativa. Muito dessa correspondência está divulgadas nas memórias que, a propósito de limites, escreveram Rio Branco e Joaquim Nabuco. Nos Anais da Biblioteca Nacional, também muito se divulgou. Como nos Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará. Na ajuda, em Évora, conforme se pode verificar dos respectivos catálogos, referentes aos assuntos brasileiros, há copioso documentário, comprobatório da conclusão. Como no Arquivo do Ultramar, em Lisboa.
Segundo os cronistas, no caso Ouvidor Sampaio, Alexandre Rodrigues Ferreira, Araújo Amazonas, em 1669, um capitão português, Francisco da Mota Falcão, teria lançado os fundamentos da fortificação, que seria a raiz mais distante de Manaus. Em que mês, em que dia teria ocorrido o episódio? Nenhum deles minúcia. Os documentos que compulsamos não adiantam uma linha como pormenor. Aceitemos, no entanto, como certa, a data – 1669. Mas esse capitão teria praticado a façanha de livre e espontânea vontade ou estaria cumprindo instruções oficiais? Agora entra em cena a documentação que pude obter. Por ela, verifica-se que Mota Falcão propôs-se ao governo de Lisboa a construção de quatro fortalezas – uma no Tapajós, segunda no Urubu, terceira no rio Negro e quarta no Madeira. Visava-se, na operação, dar garantias aos que realizavam a expansão, contendo a gentilidade hostil. Em que data foi feita a proposta e em que data foi despachada, com aprovação, a proposta? Não há documentário a respeito. Como sabemos, então, que Mota Falcão fez a proposta? Na Carta Régia, expedida de Lisboa a 15 de Dezembro de 1684, e na de 14 de Julho de 1716, há a referência clara ao que estamos registrando. Nesta última, por exemplo, escreveu-se, sob assinatura do Rei D. João V: “tendo consideração a haver feito mercê a Francisco da Motta Falcão por Alvará de quinze de Dezembro de mil e seiscentos oitenta e quatro de uma das quatro Fortalezas que se havia obrigado a fazer por sua conta dentro em quatro anos pelo Rio das Amazonas acima nas partes mencionadas, na provisão que se havia passado para o dito efeito”.
Na de 15 de Dezembro está assim dito: “E a Francisco da Mota Falcão se obrigar a fazer por sua conta as ditas quatro Fortalezas com o cargo de Superintendente delas dentro em quatro anos conforme o desenho, e a planta que fizer um engenheiro…”.
Não haverá dúvidas, portanto, quanto á incumbência atribuída a Francisco da Mota Falcão, nem da aprovação concedida por sua Majestade. Tampouco quanto ao fato de que a construção teria sido proposta do próprio Mota Falcão. Vem agora, porém, a pergunta muito natural. Ora se em 1684 é que se autorizava ou aprovava a proposta, ordenando-se, inclusive, a entrega de grupos de índios que deveriam trabalhar nas obras materiais, determinava-se que se organizasse planta e de tudo houvesse comunicação ao Conselho Ultramarino, como aceitar a data anterior, isto é, 1669.
Os cronistas que reconhecessem as informações na região, lembremos e reflexionemos, não escreveram por ouvir dizer, mas consultando a documentação local e ouvindo o depoimento dos que haviam realizado a gigantesca empresa do desbravamento e da posse do interior da região. Se assim foi, como conciliar os dois elementos?
Em nosso entender, o que deverá ter ocorrido foi – Francisco da Mota Falcão, que se constituíra pessoa de prol, como adiante verificamos, na Amazônia, ora morador de São Luiz, ora de Belém, nas suas andanças pelo interior teria verificado, diretamente, o que estava sucedendo. E na base de suas decisões, pois que mais tarde seria pessoa comprovadamente capaz em horas difíceis da conjuntura política regional, teria estabelecido um primeiro arremedo de fortificação, onde seria depois o forte de São José do Rio Negro. Handelman diz, por exemplo, em sua “História do Brasil”, que o estabelecimento foi volante, isto é, teria mudado de localização à medida que se tornava necessário estar presente em algum ponto nevrálgico no conflito com a indiada local. Mota Falcão, nas proximidades do encontro das águas, teria montado acampamento militarizado, que seria a raiz do forte de mais tarde. E esse, segundo o depoimento do próprio filho, não teria sido concluído por ele Mota Falcão, por haver falecido, pelo que o rebento assumira a direção do trabalho, por fim concluído. Certa a conclusão? Parece-se que se aceitarmos a afirmação dos cronistas e a documentação conhecida, e divulgada nesta edição comemorativa de “O Jornal”, não se pode senão concluir como estamos concluindo. O forte da Beira, a primeira fortificação no Rio Grande do Sul foram assim iniciados. O forte de São José não poderia ter tido a mesma forma originária?
Mota Falcão, em 1678, foi encarregado de subir o Tocantins, para estudá-lo na extensão que possuía e nele estabelecer o domínio de Portugal sobre as populações indígenas. Deu conta da comissão, conforme se lê em Barredo, nos “Anais Históricos do Maranhão”, evitando, no decorrer da execução da missão, chocar-se pela força das armas, com o bandeirante paulista e Mestre de Campo Pascoal Paes de Araújo, que encontrou escravizando indígenas, o que o levou a exprobra-lhe o procedimento criminoso, contrário às leis, vigorantes a respeito.
Em 1685, acompanhando o Capitão General Gomes Freire de Andrade, que vinha enfrentar a situação difícil, criada com o pronunciamento de Beckman, no Maranhão, foi pelo referido governante mandado a terra para verificar da comoção cívica e tomar contacto com os que haviam promovido o movimento rebelde, para ajustar a paz, de tudo dando conta com êxito que, de certo modo, facilitou o sucesso posterior de Gomes Freire no desembarque, sem a oposição, que lhe permitiu o restabelecimento fácil da ordem pública.
Mota Falcão era, assim, figura de prol na sociedade da Amazônia. Seus serviços eram serviços de relevo. Não o encontramos participando de negócios afastados da boa ética. Ao contrário, sempre servindo à coletividade, de que era integrante e de que, seguramente, se constituíra figura representativa. Esse o fundador do forte que deu origem a Manaus. É pequeno o número de fatos que podemos arrolar para sue perfil. Os que aqui referimos não serão suficientes para assegurar-lhe uma posição dignificante no quadro dos homens que construíram a nossa Pátria? Foi por que assim o compreendo que em 1967, pouco antes de deixar o governo do Amazonas, fiz inscrever seu nome em placa que teve dizeres escritos, a meu pedido, por Mário Ypiranga Monteiro, na parte fronteira do edifício da Secretaria da Fazenda do Estado, local onde se ergueu o forte, que deu sombra ao povoado, que se constituiu e é hoje, de Lugar da Barra, cidade da Barra na Manaus, a capital do Amazonas, onde, a 29 de março de 1808, o Governador José Joaquim Vitório da Costa instalou em definitivo a sede da administração regional.
« Back to Glossary Index