O MUNICÍPIO E O PORTADOR DE DEFICIÊNCIA
Conferência do Vereador Robério Braga, no I Encontro Regional das APAEs da 9ª Região Norte Ocidental, em 4 de maio de 1991, em Manaus.
Primeiras palavras
Aqui não vim para fazer-me admirar pela postura, pelas idéias, pelo verbo ou pelo discurso que anima e enleva o espírito, próprio conferido em urnas postas ao voto livre, em plena fase democrática. Aqui estou para fazer-me compreender e dar de mim o que em mim couber à causa que, abraçada por todos vós, deveria ser a de todos os segmentos da sociedade brasileira interessados no bem comum, no desenvolvimento dos povos e no cumprimento da máxima da igualdade de todos perante a lei, para que o progresso pudesse ser atingindo como verdadeira evolução do homem, sem restrições ao seu estado físico, mental ou psíquico, poder, condição material, informação intelectual ou nome patronímico.
Todos devemos estar à vontade para tratar da questão. Não podem haver reservas, temores, recolhimentos, mesmo que saibamos como sabemos que a ninguém pode ser suportável imaginar que falo aos que desejam e podem ouvir-me, expondo-me aos que me podem ver, enquanto outros, aos milhares, padecem de fome pelo alimento que sustenta o corpo e sofrem sede de justiça, País afora, e outros tantos que, isolados, incompreendidos, debruçados na desesperança, lastimam a deficiência que portam ou dela não se apercebam como não conhecem com exatidão a vida, e o Estado lhes trata com indiferença, e há quem os desconheça.
O tema que livremente escolhi, atendendo a gentilíssimo convite dos organizadores: “O Município e o portador de deficiência” poderá servir, como confio que sirva, efetivamente, à causa que os reúne e abriga, à qual sempre estive solidário e atento, interessado e consciente de sua importância e dificuldades, porque é através do Município que poderemos reorganizar a sociedade que temos, humanizá-la e perpetrar ações de governo que efetivamente sejam do interesse coletivo.
A revitalização do poder do Município
O Município é a forma mais original e primária de organização política conhecida no Brasil, nos moldes do “Concelho português”, no qual se pode identificar a base da legislação e da administração do interesse do povo reunido em seu território. Ao contrário do que alguns proclamam em tom de sabedoria jurídica, não é a célula da federação visto que antecede a esta forma de organização, e não é parte dela, obrigatoriamente, o que se comprova ao compararmos países unitários com a Inglaterra, Escócia, Irlanda, Espanha, Chile e Itália que valorizam o município muito mais que os países federalizados como a Argentina e o México, nos quais é um ente atrofiado do Estado.
É uma entidade anterior ao estado, do qual é parte constitutiva como pessoa jurídica de direito público interno com características de poder político. Hoje, mais do que antes, na estrutura constitucional brasileira, é ente político-jurídico com vigor, à vista da Constituição de 1988.
É como realidade social que ele nos interessa nesta abordagem, porque surge da necessidade de populações se aglomerarem em núcleos humanos depois reconhecidos pelo legislador. Seu grande valor é a característica peculiar de que todos moramos, convivemos e produzimos no território municipal e por isso mesmo o fazemos o ente menos abstrato dos que compõem o Estado juridicamente perfeito, com o qual mantemos ligações históricas, sentimentais, as quais excedem à regra das leis e respondem por uma identidade sócio-cultural que expressamos por toda a vida e transmitimos às gerações futuras.
O que precisamos é redescobrir o imenso poder político do Município para usá-lo na defesa dos direitos dos cidadãos que nele habitem, para ele contribuem e podem, mais facilmente, exercer o direito de fiscalizá-lo; e, mais que isto, precisamos reagir ao centralismo do Estado-Membro e da União que transformam o ato jurídico e a prática de governo, na maioria das vezes, em mecanismos distantes das aspirações populares e sem respeito à cadeia natural de suas necessidades prioritárias.
O que advogo é a revitalização do poder do Município não só pela capacidade ampliada de sua organização funcional, da escolha de sua representação política, da redistribuição das receitas públicas, mas principalmente pela participação mais ativa da população na gestão dos seus negócios, na manifestação dos seus efetivos interesses e necessidades e na manutenção de sua identidade.
O que aspiro agora, ao propor este tema para debate, é que esta oportunidade também possibilite a ampliação da consciência que tenho, como manauense intimamente vinculado às nossas raízes e extremamente apaixonado por nossa terra, de que nela podemos conviver com dignidade, superando as dificuldades sociais, com nível de vida que a todos satisfaça e que ao cidadão como ao poder público sejam conferidos direitos e obrigações livremente exercitados.
O Município e o portador de deficiência
Como sabemos não há coesão social, e os indivíduos se desagregam na família, nas relações de vizinhança, na escola, no trabalho, no bairro, na política, no poder, por entre grupos e segmentos circunstancialmente interessados em idéias, programas e projetos. É por isso que se pode declarar que a sociedade não é ente organizado embora as propostas cada dia mais numerosas que sustentam a composição de grupos de interesse. Enquanto isso o Estado aprimora seu raio de funções pelos governos e pela multiplicidade de órgãos administrativos, ampliando seu poder, sua função, seus direitos, e criando novas e seguidas obrigações à população. Este panorama obriga, cada dia com maior evidência, a que os cidadãos se reúnam, discutam, avaliem e combinem ações em proveito coletivo e, democraticamente, exerçam com sabedoria e habilidade o poder de composição dos quadros políticos de sua representação, a fiscalização dos atos de governo e a compatibilizarão e mobilização de projetos da administração pública.
O âmbito do exercício preliminar desta capacidade não pode ser outro senão o Município ao qual se circunscrevem nossas primeiras necessidades e aspirações básicas, conforme procuramos demonstrar ao tratarmos da “revitalização do poder do Município”, que antes abordamos.
Tomado como verdade, porque o é, inclusive incontestável, que a base estatal menos abstrata de vida do homem é o Município, em cujo território e sob cuja jurisdição se submete às leis e às ações do poder, como as regras da justiça, da política, e às condições do transporte, do sanitarismo, dos hospitais, das escolas, do comércio, e assim sucessivamente, é nele que devemos concentrar esforços que redundem na melhoria da qualidade de vida das populações assim aglomeradas.
Se assim é em relação a coletividade como um todo, não poderia ser diferente com qualquer segmento social ou parcelas multifacetadas do interesse coletivo, onde se insere a pessoa portadora de deficiência que pode estar em todas as ruas, bairros, casas, palácios, casebres, escolas, e não raro, nas vias públicas, expostas ao abandono ou ao isolamento.
Vejamos que, fora do campo subjetivo das obrigações municipais, no texto da legislação básica de seu funcionamento e organização que é a Lei Orgânica, podemos constatar que é sobre ele que pesam a solução dos problemas fundamentais da população. Senão vejamos: transporte coletivo; abastecimento de água e esgotos; mercados, feiras e matadouros e a fiscalização da qualidade dos alimentos; cemitérios e serviços funerários; limpeza pública; educação pré-escolar e ensino fundamental; defesa civil e combate a incêndios e calamidades; ordenamento do uso do solo; construção de estradas, parques e jardins; sinalização das vias públicas; prestação de serviços de táxi e exercício do poder de polícia urbana, inclusive sobre obras e edificações em geral, além de outros.
Podemos ver, de plano, que em muitas, senão em todas estas obrigações do poder público municipal, se podem inserir interesses e necessidades da pessoa portadora de deficiência, cujas questões precisam ser equacionadas a contento para que lhes seja permitida a igualdade perante a lei de que nos fala a Constituição e mais que isto, possibilite a ampla convivência social, urbana, citadina que todas tem direito.
Adotemos exemplos extraídos da lista de encargos do Município para que possamos comprovar, aos olhos de todos, a importância da revitalização do seu poder e da permanente atenção que devemos conferir-lhe.
Quais as condições de transporte coletivo que atendem aos direitos das pessoas portadoras de deficiência, enquanto cidadãos, quanto ao tipo de veículos, às condições de acesso, às áreas de estacionamento, às acomodações internas das viaturas? Que escolas gratuitas destinam atenção especial de seus técnicos e profissionais aos portadores de deficiência no cumprimento da obrigação constitucional de assim agirem? Que escolas dispõem de classe especial capaz de incorporar estudantes diferenciados em graus e questões distintas, detentores do legítimo direito à educação e formação plenas? Que respeito se tem com esta parcela de cidadãos e cidadãs quanto a construção de ruas, nas quais não se tem calçadas que lhes possibilitam o uso, porque estreitas, em desalinho e perigosas? Vias públicas sem acesso para cadeiras e macas, sem recuos e áreas de estacionamento próprios ao resguardo da vida das pessoas. Que respeito à cidadania tem sido assegurado nas obras de construção civil que, aprovadas pelo Município em todo o país, não obrigam sues construtores a edificarem escadas com corrimão e patamares, portas e elevadores adequados ao uso de macas, cadeiras, por portadores de deficiência, na consumação do sagrado direito de ir e vir que preside a instituição de todos os demais direitos e obrigações constitucionais, porque se reporta à liberdade em si. Que restaurantes, lojas, clubes, butiques, cabeleireiros, bares, bancos, dispõem de condições adequadas de espaço e facilitação de acesso que garantam ao cidadão portador de deficiência a utilização destes serviços? Onde podemos encontrar a sinalização de trânsito, nas vias públicas, adequadas e específicas, para o assunto em estudo? Que praças, jardins e parques podem ser freqüentados sem atropelos e em segurança, pelos portadores de deficiência? Qual a biblioteca ou sala de leitura a elas destinadas?
São estas todas obrigações do Município, algumas não dependentes de leis que regulamentam estes encargos. São direitos individuais no exercício do cotidiano da vida, na qual o portador de deficiência não é estranho nem aposto, mas ser vivo e capaz de direitos e obrigações compreendidas as suas peculiaridades pessoais.
É com esta visão que compreendo a relação que se deve estabelecer com o Município, seus representantes, agentes do poder político, a sociedade quando empenhada no resgate dos direitos inerentes ao homem como ser integrante da Nação, detentor do poder e constituidor do Estado que deve estar a seu serviço.
MANAUS E O PORTADOR DE DEFICIÊNCIA
Vamos agora trazer a questão os limites do nosso Município, no qual a base de toda a legislação é a Lei Orgânica da qual fui Relator, pela qual venho pugnando e cujo conhecimento, reconheço, é ainda restrito.
A Lei Orgânica de Manaus consagra os seguintes princípios, regras e obrigações que interessam ao portador de deficiência:
·Proteção e garantia do Município às pessoas portadoras de deficiência (art. 22, I, a);
·2% das vagas do quadro de pessoal para pessoas portadoras de deficiência (art. 112);
·jornada de trabalho reduzida para servidor municipal (art. 116);
·instituição do auxílio “integração social” de 25% do salário base do Município para servidor com filho portador de deficiência (art. 119);
·eliminação de barreiras nas praças, calçadas e locais públicos (art. 246);
·facilitação de acesso nos transportes coletivos (art. 256);
·reserva de vagas (5%) do quadro de pessoal das empresas permissionárias e concessionárias de serviço público para portador de deficiência (art. 258);
·isenção do pagamento de passagem em coletivo para deficiente menor em atividade escolar (art. 261);
·programas culturais de integração da pessoa portadora de deficiência (art. 332);
·instalação de biblioteca municipal para deficientes visuais nos bairros (art. 337);
·aplicação obrigatória de 3% do orçamento para educação em educação especial (art. 354);
·o Município garantirá atendimento desportivo e recreativo na escola e comunidades, ao portador de deficiência (Art. 362) e fixação de espaço público para deficientes (art. 366);
·criação da Câmara da Pessoa Portadora de Deficiência, no Conselho de Desenvolvimento Social (art. 380);
·prioridade para o exercício de comércio eventual ou ambulante (art. 429).
Antecipando-se a este diploma legal, temos a lei de nº 2032, de 21 de agosto de 1989, que “Determina regras básicas para a facilidade de acesso e locomoção de pessoas portadoras de deficiência”, da qual me orgulho de ser o autor na missão política de que me acho incumbido, e que atendem as questões que, necessárias, precisam ainda ser implementadas.
O “lobby” em defesa dos interesses coletivos.
Numa sociedade efetivamente democrática, aberta, é natural que surjam os chamados grupos de pressão ou de interesse que, valendo-se da argumentação e da mobilização popular, defenda interesses localizados, idéias, providências de governo, instituição de leis e atos regulamentadores que satisfaçam as necessidades coletivas ou de grupos legítimos. É o que os ingleses chamam de “lobby”, com raízes norte-americanas, atividade que pode parecer estranha, exdrúxula, entre nós, com caráter pejorativo, mas que será regulamentadora nos EEUU, e em França, há mais de quarenta anos.
Devemos eliminar os preconceitos a esse respeito e abrir as estruturas de governo à contribuição coletiva na defesa dos interesses, aspirações e necessidades de grupos ou de grupo social mais amplo, sempre legítimos, para que se comprove se são justos, inadiáveis, insuperáveis, próprios, adequados, convenientes ao bem de todos e, assim, sejam efetivamente implementados por quem de direito. É forma legítima de expor controvérsias e buscar a convergência do interesse público entre a base da sociedade organizada e o poder constituído.
Há o “lobby” destinado a defender a organização de leis urgentes e necessárias, que regulamentem a obrigação de fazer ou deixar de fazer como regra imposta ao Estado ou a particulares, como vimos há pouco quando da reorganização constitucional do país. Há de haver, pois, o “lobby” para levar a sociedade, o poder público, as instituições civis, ao cumprimento da lei, a aplicação de suas regras, as fiscalização de sua implantação, a defesa dos direitos assegurados, a conscientização coletiva. É para este último que quero convocar a coletividade como um todo e especialmente o segmento mais interessando na implantação de leis de interesses da pessoa portadora de deficiência como mecanismo legítimo, capaz de influir decisivamente na mudança de comportamento social, de governo, e de instituições na relação direta com a pessoa e a família, esta como célula mais próxima do ente portador de deficiência.
Este evento é o cumprimento, também, do papel de conscientização coletiva mais deve ser, e não pode deixar de ser, o estopim para uma grande mobilização social em defesa da implementação das leis do interesse mais próximo deste grupo ao qual me reúno e outros deverão aderir porque conscientes do papel que exercem na opinião pública e na estrutura da sociedade brasileira. Objetivamente precisamos compor este “lobby” e, de forma organizada e franca, aberta, criteriosa e responsável, defender a implementação das leis municipais que regem a meteria, o aperfeiçoamento desta legislação, e a ação sistematizada dos poderes constituídos na compreensão e solução dos problemas que ferem fundo as aspirações e necessidades do portador de deficiência.
Não estaremos com isso estabelecendo diferença, discriminação, submissão, mas defendendo com identidade que em nada nos deve nem pode envergonhar, o interesse legítimo de parcela da sociedade a qual estamos mais proximamente ligados. É democrático fazer assim, é indispensável, para o progresso que todos queremos para o país que não pode prosperar sobre os escombros dos seus filhos.
Palavras finais
Mãos à obra. Há ainda muito que fazer. Para a continuação desta tarefa tenham-me como um dos vossos e servirei como desejo de fato servir às causas nobres e às esperanças do povo. Perdoem-me se não lhes respondi às inquietações, mas para repor-me no largo caminho da contribuição que de fato desejo oferecer-lhes, estou disposto ao debate, exposto às idéias básicas que me reservei conferir-lhes. Com ele renovaremos as idéias e enriqueceremos os espíritos.
« Back to Glossary Index