1855. Março.
A Cidade da Barra (1) não conhecera ainda nenhuma crise de saúde pública, nem o flagelo da febre amarela e da bexiga que assolavam o Pará, por aqui chegara. Apenas dois médicos residiam na capital da Província recém-instalada. Um deles, Antônio José Moreira se encarregava de tratar as pessoas pobres mediante contrato firmado com a Câmara Municipal. Não havia hospital nem farmácia e a vacinação preventiva era empírica, com índices insignificantes principalmente pela falta de vacinadores paroquiais. O equilíbrio da vida era mantido pela salubridade, sossego e fertilidade da terra. A preocupação política centrava-se na abertura da estrada para os campos do Rio Branco onde poderiam ser estabelecidas fazendas de criação e na necessidade de controle da colheita de ovos de tartaruga “…o melhor e mais usual alimento dos habitantes da Província” (2) que vinham sendo prejudicados pelo recolhimento em período impróprio e com estragos crescentes gerando a redução do produto, e encarecendo o preço o que o excluía da cozinha dos pobres que residiam nos povoados amazonenses.
No campo da saúde os procedimentos clínicos fundavam-se na resistência orgânica do paciente e o estado geral do sanitarismo ficou perfeitamente esclarecido em documentos de 1854 firmados por Antônio José Moreira (3) e pelo médico homeopata Marius Porte que, em trânsito pela região, procedeu a exame dos problemas provinciais em vários rios da capital, atendendo solicitação do presidente Herculano Ferreira Penna (4).
O método clínico usado era o ecletismo médico com atenção à filosofia organicista, com o tratamento curativo pelo qual se usava hydro-sudo-pathia e tártaro emético contra as febres simples, catarros e anginas; celomenos e sangrias no hipocontro direito e banhos sedativos contra as febres biliosas; e, clisteres, banhos emolientes e proibição absoluta de alimentos, contra desinterias.
Na Barra n_o existiam moléstias endêmicas, mas as enchentes e vazantes do rio permitiam a manifestação de moléstias epidêmicas de caráter diferente, todos os anos. Os índios, em grande massa, morriam de catarro pulmonar, diarréia, febres, nostalgia e bexiga, e a lepra começava a ser identificada como incurável, alastrando-se principalmente no rio Purús.
Passada a primeira viagem do vapor “Monarcha” pelo rio Negro, o governo autorizava o pagamento dos tripulantes e se preparava para cumprir as ordens do Alvará de 1º de março que determinava a execução de obras no prédio nacional de S_o Vicente para instalação do hospital militar conforme plantas enviadas a capital do Império em dezembro de 1854. Seria o primeiro hospital de Província.
1855. Junho, 9.
No velho porto da Barra ancora o vapor “Tapajós” ,da Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas que, chegando de Belém, anuncia as novidades dominantes na capital paraense, nada lisonjeiras ou satisfatórias, porque moléstia mortífera ali grassava, até então conhecida como cholerina. De pronto os 40 praças embarcados no vapor foram isolados na enfermaria militar improvisada no edifício de S_o Vicente e, atentamente examinados, sem que se encontrasse um só caso da doença, embora a debilidade física de alguns.
Tal fato serviu para alertar as autoridades. Crédito especial de dois contos de réis foi aberto no orçamento provincial para fazer face às despesas de prevenção à doença, enquanto uma comissão de atendimento aos pobres se organizava principalmente para facilitar que todos tivessem melhor alimentação. O Serviço de Provedoria de Saúde foi organizado, sendo seu primeiro titular o dr. Antônio José Moreira, dispondo, imediatamente, de transporte adequado para a inspeção dos navios ao largo do porto: uma canoa, quatro remeiros e um patrão. No interior foram instaladas comiss·es de socorro: em Vila Bella (5), Serpa, Silves, Maués e Borba. A melhoria das condiç·es de alimentação da populacho era tida como grande medida de prevenção, racho pela qual o governo determinou a importação de gêneros que foram vendidos a preços módicos. De Santarém vieram 150 alqueires de farinha; de Silves 13 rezes; de Rio Branco, 12 rezes. Entendia o governo que a situação estava sob controle, principalmente porque n_o havia registro de nenhum caso da doença em território amazonense.
Junho, final do mês.
O vapor Marajó (6) em viagem procedente de Belém confirma ao atracar no porto da Barra do Rio Negro que a doença dominante na Província vizinha era o cólera morbus. Entre seus passageiros foram muitos os acometidos pela doença. Uns faleceram ao longo da viagem, dois foram vitimados fatalmente durante a atracação em nossa cidade. Recolhidos os mortos sob a supervisão direta da Provedoria de Saúde, foram sepultados em lugar distante e os passageiros acometidos do mal, entre os quais um africano, foram todos recolhidos na Rocinha do seminário especialmente cedida para este fim pelo Vigário Geral. Fundeado ao largo, por segurança, o vapor era olhado com horror pela população e tripulantes.
Foram 64 pessoas atacadas pelo cólera, com um óbito em razão de forte febre advinda no terceiro período de manifestação da doença contra a qual se aplicava medicamentos vindos do Pará graças a aç_o do dr. _ngelo Custódio Corrêa, sediado naquela capital.
O governo Imperial socorreu a Província. Enviou à Barra os médicos Cassiano Augusto de Mello Mattos e Joaquim Carlos da Rosa, além dos estudantes do 6º ano de medicina, Marcelo Labot de Castro e Antônio David de Vasconcellos Canavarro
que, mesmo tendo chegado depois da crise da doença, prestaram serviços relevantes ao governo provincial com vistoria das condiç·es de saúde pública em várias localidades do interior, principalmente Tabatinga e Barcelos.
1855. Dezembro, 24.
A festa cristã_ do Natal foi ameaçada com a chegada de 50 praças atacados pela doença, dos quais 5 vieram a falecer. Por prevenção e controle determinado pelas autoridades sanitárias foram desembarcados no distante porto da Olaria, ficando em observação de quarentena, e somente depois puderam vir para a cidade.
1856. Janeiro.
Surge em Serpa, depois Itaquatiara, um foco da doença. O governo provincial desloca um médico e suplementa o orçamento com um conto de réis visando combater o mal naquela localidade.
1856. Julho.
Depois do período de domínio da doença – de junho a setembro do ano anterior, as estatísticas de óbitos da Província n_o eram exageradas em relação ao período em que n_o houve manifestação epidêmica, tomado como referencial os anos de 1853 e 1854, e das 188 pessoas atacadas pelo cólera, 3 haviam falecido, levando as autoridades a declararem pela manifestação expressa do presidente da Província, Jo_o Pedro Dias Vieira (7), “…a epidemia atacou então,…(graças a Divina Providência) com muita benignidade…” (8). Quando se pensava extinta, recrudesceu em Silves e Serpa, deixando depois a febre amarela que fez muitas vítimas, contaminando cerca de dois terços da população e obrigando providências especiais como fechamento do cemitério de Nossa Senhora dos Remédios (9), abrindo-se novo, em local chamado de caxoeira e que o professor Agnello Bittencourt diz ter sido o de S_o José, na atual praça da Saudade.
Passada a fase aguda da doença que cessou em junho de 1856, o hospital de S_o Vicente tinha as enfermarias equipadas com todos os recursos da época, pronta para cuidar dos 9.183 habitantes da capital ou dos 41.819 de toda a Província divididos em seis municípios. A cidade da Barra era reconhecida aos esforços do Pe. Torquato José de Souza, do Frei Marcello de Santa Catarina de Senna (10), como de igual modo Vila Bella reconhece os esforços de Joaquim José da Silva Meirelles e Serpa a dedicação de Damazo de Souza Barriga (11), que se empenharam nas miss·es civis de atenção aos doentes porque afinal a crise da doença foi a tal ponto preocupante que no relatório oficial daqueles anos foi sempre assunto destacado, mobilizando o governo provincial e a sede do Império, só diminuindo pela crise da febre amarela que grassou de forma grave e longa, e quase desesperadora.
Em 1991, pairou nova ameaça de explosão da doença entre nós, principalmente na região de fronteira com o Peru, largo espaço aberto à ampla penetração de populares, sem controle de porto capaz de identificar a contento, casos de infecção.
(Este texto foi originalmente publicado no D.O. Leitura, suplemento do Diário Oficial de São Paulo)
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