BARRA – 1830
ROBÉRIO BRAGA
Acabara o período de lutas e rivalidades entre a Câmara de Vereadores e o Comando Militar que anuncia Bertino de Miranda (1), existentes até 1828, e o Lugar não estava livre da submissão à Barcelos, onde então funcionava o Senado da Câmara que por tudo decidia, à distancia, até sobre a liberação de embarcações que por aqui aportassem com destino ao mar-dulce e suas estradas naturais, ainda pouco conhecidas, com ordens que chegavam a demorar mais de vinte dias.
Já não era mais o tão acanhado lugarejo de 1807, com um forte, poucas casas onde só se podiam instalar o Comandante e a guarnição, e as choupanas dos índios.
Por aqui chega Henrique Lister Maw, quase desaparecido, súdito da coroa inglesa, em pequeno bote que muitas vezes era obrigado a acostar nas margens do rio, porque carregado pelos ventos que sopravam ao sabor dos tempos de verão. Vinha de Tefé, guiado por índios da região e confiante na aceitação oficial que lhe dariam as autoridades porque recomendado pelo Comandante ali instalado e por Mr. Cauper, em carta de apresentação que já substituía a do Cônsul inglês e outras credenciais trazidas de origem.
Mr. Cauper era o homem mais rico do lugar tefeense. Não se dava ao luxo de usar pão, mas sustentava-se de tartaruga e punha-se quase sempre em conversas no terreiro da casa, entre baforadas de fumo indígena, a ouvir uma guitarra dolente.
O primeiro impacto do viajante que serve de fundo à recomposição daqueles tempos, por esta crônica, foi com as águas do Rio Negro, assim tão fortes, quem sabe, indagava o inglês ante o colosso – pela quantidade de ferro, porque
“… o mesmo rio tem a aparência de mármore preto; aonde tem pouco fundo, é pardo e transparente, e quando se apanha água em pequenas porções é ela cristalina e cintilante…” (205)
o desembarque na Barra é seguido da procura pela casa do Coronel, autoridade a quem deveria apresentar as credenciais, pedir autorização para continuar a viagem, solicitar pouso, alimentos e guarida. A caminhada breve, do porto improvisado em direção do casario, leva-o a indagar de quem passa, onde encontrar a autoridade. Na janela do casarão um europeu presta-se ao serviço, rompendo a dedicação a que ali se dava, de ver o tempo e ouvir o vento. Era o cunhado do Coronel Zany, posto a meditar na janela do sobrado mais vistoso, que os convida a entrar.
O Coronel Zany era o Comandante das Milícias do Rio Negro, nascido na Itália, falando um pouco da língua natural do viajante, logo se fez compreender. Conta-lhe então sua própria história: as ordens de Napoleão o fizeram servir aos franceses, com o que não se agradou fugindo para a fragata inglesa Thalia, indo para Lisboa e de lá para o Brasil e para estas terras. A patente resultara do apoio que concedera, após sete viagens de reconhecimento do Amazonas, aos estudos de Spix e Martius, até o rio Jupará, pouco antes, pelos anos de 1817 a 1820. Antes Capitão, e servil aos estudiosos, foi reconhecido então com a Comenda da Ordem de Christo, a promoção da patente, autorização para compor milícia passada pelo Imperador D. Pedro, e pedidos seguidos de coleta de material natural da região que servisse ao Museu do Rio de Janeiro. Por isso recolhia, sob as ordens diretas do Imperador, coleções de madeiras, pássaros, outros animais, minerais, tintas, especiarias e produtos indígenas, inclusive anil de boa qualidade; canela grossa e ordinária; pucherim – ou noz noscada da Sul América (mais comprida e maior que a da Índia); cumara ou feijões de Tonquim; carajura, tinta encarnada feita de folhas de árvore, igual ao anil; tabaco decorado com penas; e, especialmente, o galo da serra, cuja plumagem era muito mais brilhante do que a dos que podiam ser encontradas na Inglaterra.
Homem abastado, tinha um armazém com vários gêneros e cerca de 300 índios que o serviam como empregados em suas terras, era bem entendido em bordas para vestidos de penas, representando flores que são os encantos da vida para quem sabe cultivá-las a cada hora com o sopro benfazejo das palavras e do amor.
Já em 1817 sua residência na Barra – agora em obras para substituir madeiras por pedra, por causa da umidade excessiva, já naquele tempo sua casa era a mais importante do lugar,
“…parecia a mais importante de todas, por motivo dos seus dois pavimentos, primando sobre a própria residência do governador…” (152, Spix e Martius)
Sua fazenda era Manacapuru, distante da Barra apenas um dia de viagem, na margem meridional do Amazonas, depois da fazenda Caldeirão, onde o governo determinava a plantação de café. Era uma chácara igual à povoação de Casara. Vivia mesmo, pode-se dizer repetindo o cronista de 1830, em um certo fausto, orgulhoso dos serviços que prestara aos pesquisadores e cientistas do passado recente, embora a grave doença que o acometeu no alto Juruá e o fez separar-se de Martius em Maripi, coisa de recuperação demorada, que dominou a quase todos os viajantes, inclusive aos naturais, mas com ele foi mais grave porque,
“…consumido pela febre, havia ingerido como limonada, uma porção de vinagre, e com isso o seu estado piorou…” (259, Spix e Martius)
e até os índios, um mulato e um escocês que o serviam, estiveram doentes de febres e ataques de vermes, mas foi ele quem mais demorou a curar-se.
Sua propriedade a todos impressionava, posta em
“…terreno elevado em 20 pés acima do nível da água […] é exposto as inundações anuais, e portanto, presta-se a qualquer gênero de lavoura. Tinha ali 20.0000 cafeeiros e mais cacaueiros, senzalas de escravos e índios…” (Spix e Martius)
Tinha a seu serviço, especialmente, índios passes, jures e macuriás, vindos do Japurá, mas os Muras estavam pelas cercanias, trazendo famílias e acorrendo a qualquer alarde.
Casado com a filha do último governador da Comarca do Rio Negro, José Victorio da Costa, que dá nome à rua de Governador Vitório no centro mais antigo de Manaus de hoje, tinha já uma das filhas casada com o Ouvidor, então chamado para Desembargador do Maranhão.
De tantos e bons serviços prestados a Martius, mas orgulho teria tido se conhecesse os agradecimentos que o pesquisador fez incluir em sua obras noticiosa da viagem,
“…prevaleço-me da oportunidade de poder manifestar publicamente a esse meritíssimo amigo os meus sentimentos de alta consideração e reconhecimento…” (269, Spix e Martius)
Contudo não era ele a autoridade que deveria receber as credenciais do viajante. Essa missão competia ao Comandante das Armas, o Coronel Joaquim Felippe dos Reis a quem levou os visitantes. Homem velho, de pequena estatura, quase sempre posto em farda de jaqueta azul, bordada e ourada com franja de ouro, chapéu armado, sobre e luvas brancas e que o recebeu cercado de oficiais, em posição e gestos altamente civilizados.
Não era bicho do mato, deve ter cogitado o inglês, em seu porte agora retemperado, pois diante de quem poderia atendê-lo, reconhecê-lo e, de alguma forma, contribuir com o que pretendia cumprir nos rincões amazônicos. Viajado, o velho coronel comentou de logo na conversa entrecortada na mesa do jantar bem posto e abundante a que todos se assentavam, que andara por muitos lugares, como Flamonth, Liverpool, Bambaim e o Pará.
Devem ter vencido horas a fio em conversas de toda a ordem. Uns com os outros, a trocarem informações preciosas, nestas condições sempre muito elogiadas. Ainda assim as senhoras da casa não apareceram diante dos convidados. Como de hábito na Barra, quase à moda maometana, ficavam recolhidas, mas os senhores afirmavam estarem em serviço nas chácaras, porque era tempo de colheita do café e do cacau.
A Barra tinha pouco mais de 3.000 habitantes, cuja maioria só se reunia nos festejos de São João, da Páscoa e do Natal. Poucas casas, algumas em dois pavimentos, em diferentes ruas. A cidade era dividida por pequenos portos improvisados, ruas não calçadas e mal acabadas. Ponte de madeira tosca procurava unir dois portos de beiradão. Não era planta e alguns viajantes a consideravam posta fora da rota dos principais barcos que passavam ao largo, distante até, na confluência dos grandes rios, onde aliás desejavam, tivesse sido erguido o Lugar.
Não tinha mercado permanente e as canoas que chegavam das chácaras mais próximas traziam gêneros, café, cacau, salsaparrilha, e quase tudo de que precisavam seus moradores para a vida modesta, recatada, sem festejos maiores.
A guarnição militar era de cerca de 180 praças que se dedicavam ao policiamento das ruas, vencidas as lutas passadas, em patrulhas de oito homens.
Aos domingos, a Missa. O Vigário Geral era um velho pregador e quase sempre podia ser encontrado sentado em frente de sua casa, olhando para o rio, em lugar alto e privilegiado, com “…um telescópio […], admirado pelos índios e motivo de medo para as mulheres, que todos os dias se banhavam no rio…”
Esta modéstia resumia quase todas as precauções daquelas mulheres porque “…não sendo a castidade uma das virtudes que seguem com mais rigor, nem é provável que assim aconteça enquanto continuar o atual sistema; ao contrário mesmo tempo em que os seus encantos não eram dos mais tentadores…” (215)
A igreja, como sempre, erguida de forma simples, em ponto especial do terreno mais seguro, “…pouco ornada e faz frente para o rio, tendo um largo defronte, e o quartel ao pé, atraz da qual e um pouco mais abaixo no rio está o Forte…..” (211), como a compor o cenário mais perfeito para o erguimento da civilização colonizada. Como sempre foi, a igreja punha-se acima das forças militares, até na distribuição espacial das suas instalações.
A água, tomada em geral com bagas de embaúba para purificação e melhor sabor, era servida sem requintes de louças, mas as montarias, construídas em troncos, normalmente de jacareúva, abertos no sentido do comprimento e alargados com fogo, serviam a cristãos e pagãos, que ainda houvessem por ali nas cercanias.
As principais autoridades do Lugar eram o Comandante das Armas, o Comandante das milícias Cel. Zany, o Ouvidor, já agora Desembargador do Maranhão, e o Vigário Geral.
Os índios eram empregados em todos os serviços, e dançavam ao som de “toré”, instrumento de sons ronquenhos, de gomo de taquara, em cujo nó furado prendiam um pedacinho de bambu, em forma de lingüeta, como imitação de garganta a que os Muras usavam também para avisar sobre a presença de elementos hostis. A notícia que davam dos filhos do lugar, não era lisonjeira. Viviam os índios, na maioria, no mato, sem religião, sem leis, sem governo, com ocupações pouco superiores às dos animais, porque adstritas a obter o que comer, sendo alguns conhecidos como canibais. Informações distantes da realidade da vida dos povos indígenas, sem avaliação e conhecimento de como se portavam entre si, com valores que não eram conhecidos dos europeus.
Para romper o tempo e fazer progredir o Lugar, ali estavam instaladas desde Lobo D’Almada uma fábrica de algodão, “…na mesma linha com a igreja, mas fazendo face ao lado oposto, formando parte de uma outra rua…” (211). Era fábrica do governo. Só tinha as rodas de fiar, como antigamente se fazia na Inglaterra, e observou o viajante, e os teares eram trabalhados à mão por mulheres que recebiam um tostão por cada meio arrátel de algodão fiado, geralmente feito em um dia de serviço, tempo em que, no máximo, poderiam produzir um arrátel inteiro. Não era dos serviços mais recomendáveis para quem conhecesse outras fábricas, mas servia ao lugarejo, porque “…o fio era ordinário e desigual, e aparentemente ao que fazem em Moyobamba…” (213).
Para guarda as mulheres e por ordem, porque nem sempre elas eram dóceis e ordeiras, havia na porta um guarda armado, sentinela das forças do Império, capaz de fazer disciplina na maioria das vezes.
Na fábrica de louças, em telheiro armado diante da casa do Cel. Zany, era tudo muito mais simples, ainda. O barro vinha do outro lado do Rio Negro, carregado e amassado pelas mulheres, era posto numa cavidade quadrada, dentro do telheiro, dali saindo como telhas, jarros grandes, cada um de 1 almude, para guardar manteigas e utensílios caseiros. Um homem fazia os jarros e outro administrava todos os serviços, inclusive os mais pesados que eram prestados pelas mulheres.
O hospital, construído há pouco, era grande e bem edificado. Não há notícia de médico que o servisse.
Os índios, ainda que pagos pelos serviços com anzóis, agulhas, cascaveis, tesouras, contas, que muito lhes agradavam, distante da cidade.
Já reinavam, de há muito, descontentamentos político. O governador Joaquim J. Victorio da Costa, engenheiro, autor dos mapas do Rio Negro e do Solimões, sobre os quais se baseou o mapa geral da América do Sul, então conhecido, sucedeu no cargo ao Governador interino José Antônio Salgado, protegio do Capitão-General Francisco de Souza Coutinho e de logo fez voltar a residência dos governadores para a Barra, abandonando Barcellos, mas não escapou à crônica desairosa pelas negociatas com a chácara do Tarumã, onde fundou uma fazenda oficial, depois do furo do Xiborena e do Paricatuba, que era local pertencente ao Ouvidor. Foi tal a grita que a Câmara de Serpa, à qual a Barra estava agora subordinada, negou-se a conceder-lhe o aprove-se da administração.
Não parariam aí, os desentendimentos. Pouco depois, em 1832, a 12 de abril, viria o motim que mataria Felippe dos Reis dentro do próprio quartel e no qual o ouvidor Manuel Bernardino de Souza Figueredo seria tido como cúmplice, em tudo ficando instável o quadro político administrativo, até que a Barra passou, em 1833, a ser cabeça de Termo, ter direito a sua própria Câmara de Vereadores. Era a implantação do Código Criminal.
Os contornos reconstituídos da cidade e seu povo, seus líderes e seus hábitos, não constam objetivamente da narrativa do autor que empresta pano de fundo a este cenário recomposto. Verdades os fatos, inteira a recomposição histórica da cidade e dos personagens, como terá se despedido o viajante para buscar outros caminhos, rio-mar acima, invadindo a natureza ainda pouco visitada, vencendo agruras e temporais?
Não importa, já naquele tempo visitar e vencer a Amazônia era o desafio de maior honra que se poderia conferir aos súditos da coroa.
BIBLIOGRAFIA
Henrique Lister Maw, Narrativa da passagem do Pacífico ao Atlântico, através dos Andes nas Províncias do Norte do Peru, e descendo pelo rio Amazonas até ao Pará. Manaus. ACA, 1989. Edição fac-similar.
Spixe Martius. Viagem pelo Brasil. Tomo III e 1817-1820. Edições Melhoramentos. 2ª edição s/d.
Academia Brasileira de Letras. Dicionário da Língua Portuguesa, ___ por Antenor Nascentes. Bloch Editores. 1988. Rio.
NOTAS
(1) Bertino de Miranda anunciava os fatos políticos em sua obra “A Cidade de Manáos sua história e seus motins políticos. Typ. J. Renaud & C., Manaus. 1908.
(2) PUCHERIM
CUMARA
CARAJURA
( ) CASARA, povoação referida por Henrique Lister Maw em
( ) O ouvidor foi Desembargador no Maranhão em______
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