Desastre anunciado
O fogo que dominou todo o edifício de mais de duzentos anos avançou sobre a memória do País e de todos os brasileiros, e, em pouco tempo, transformou em cinzas o trabalho centenário de pesquisadores, doutores, operadores da arte e das culturas, de várias outras nações, das nossas origens e da formação da nacionalidade”
Assisto, olhos fixos no televisor, à destruição de um dos maiores acervos patrimoniais do País e de grande representação mundial: o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, em plena Semana da Pátria.
O fogo que dominou todo o edifício de mais de duzentos anos, que continha as mais raras e importantes coleções da museologia brasileira e dos mais variados ramos do estudo científico, histórico, artístico e cultural em sentido amplo, destruiu não só peças irrecuperáveis, documentos inigualáveis, estudos de alto quilate, peças raras e únicas. Avançou sobre a memória do País e de todos os brasileiros, e, em pouco tempo, transformou em cinzas o trabalho centenário de pesquisadores, doutores, operadores da arte e das culturas, de várias outras nações, das nossas origens e da formação da nacionalidade.
Inacreditável que a Nação não se dê conta do valor desses acervos e os deixem abandonados à própria sorte, sujeitos ao descaso dos que se julgam importantes e só dão importância a seus próprios interesses. O que resta aos apaixonados que lidam e trabalham nesses museus é a luta cotidiana pelas suas preservações, na maioria das vezes de maneira improvisada em razão da falta de recursos financeiros mínimos necessários.
Como explicar que todas as tentativas de modernizar as instalações, as redes elétricas e de segurança e combate a incêndio e pânico do prédio de um dos principais museus da América Latina não tenha tido guarida nas decisões dos burocratas de plantão nos organismos federais, durante tantos anos? Quem vai assumir essas responsabilidades? De que adiantará punir os culpados, se é que chegarão a ser punidos, depois da destruição e da catástrofe?
Perdas inestimáveis e ao mesmo tempo insubstituíveis, todas elas. O que restar, se algo restar dos escombros do importante edifício do Museu Nacional, estará imprestável e de dificílima possibilidade de restauração e sem condição de reposição. Suas coleções, nacionais e multinacionais e de várias origens e áreas de concentração científica, viraram pó.
De todo modo, ao que se viu dos depoimentos do vice-diretor do Museu, ao que se conhece do papel desempenhado pela burocracia brasileira e pela forma como a maioria dos gestores enfrenta essas questões, pode-se falar em desastre anunciado, porque não era mais concebível manter em funcionamento sem o suporte técnico-operacional e logístico mínimo adequado, um edifício dessa natureza.
Incorporando-me à dor dos que atuavam nessa instituição de ensino, pesquisa e memória, dou-me conta, mais uma vez, de quão frágeis se transformavam edificações que, por falta de conservação e modernização adequadas, ficam sujeitas a desastres. Em alguns casos ainda há quem, de forma irresponsável, coloque em risco por conta própria e sem a menor preocupação outras edificações históricas e acervos de valor que estão sob sua responsabilidade, unicamente para produzir discurso vazio e falso de popularização e democratização da cultura, como se vê país afora.
Infelizmente, o incêndio do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista destruiu grande parte da alma brasileira.