MANÁOS
1830-1834
Breve notícia histórica da Instalação da Câmara Municipal de Manaus
Robério Braga
Manáos, 1832.
Vila de onze ruas e uma praça, limitada pelos bairros de São Vicente-de-Fora e dos Remédios, até então considerada subúrbio de Serpa, depois Itacoatiara, em que os atos oficiais eram afixados em logradouros públicos para conhecimento amplo pela inexistência de outra forma de comunicação com o povo que, falando português, não abandonara ainda a língua geral. Posta sob a orientação do “arruador”, figura conhecida e de responsabilidade urbana que limitava as aspirações dos 1.188 moradores e até mesmo 379 escravos negros, porque todos residentes nas 232 casas registradas.
Não havia ainda aparência urbanística, e mesmo as casas com janelas guarnecidas de urupema, construídas com maior cuidado, não fugiam da regra geral de uma paisagem com encantos naturais, “aprazíveis e arejados, e […] pontos de pitoresco e magnífico como o dos Remédios donde se avista o resto da cidade…” (1), de contorno ainda acanhado, na qual se podia percorrer as ruas das Gaivotas, do Sol, da Lua, a travessa Estrela, ou quem pretendesse uma viagem um pouco mais longa entre os arvoredos, buscar o caminho da Cachoeirinha, a partir da Praça da Fortaleza, do Largo da Trincheira ou do beco do Enforcado.
Não era a terra próspera dos tempos de Lobo d’Almada, mas começava a ter autonomia política desejada, embora o sonho da separação ainda estivesse latente. Seu povo vivia de pequenos comércios de cacau, de salsa e de castanha, e em festas cívicas, jantares e bailes, ou em eventos religiosos aos quais grande parte da população se dedicava.
Era este o cenário de quase dez anos depois da Constituição do Império (1824) ter determinado a eleição da Câmara, regulamentada pela Lei de 1º de outubro de 1828 conhecida como o “Código dos Vereadores”. As eleições deveriam ser realizadas a cada quatriênio, no dia 7 de setembro com aviso afixado quinze dias antes do pleito nas portas de todas as paróquias para conhecimento dos eleitores escolhidos como representantes paróquias e formação do chamado corpo eleitoral. Em que pese a regra geral, objetivando não interromper o funcionamento das Câmaras já instaladas, o Aviso Imperial de 27 de junho de 1829 determinou que nos lugares onde estivesse em curso o período legislativo municipal, este deveria ser concluído até a finalização do quatriênio, logo seguido de eleições gerais. Sustentando-se nesta regra, a Câmara de Serpa, instalada na Barra, não convocou as eleições para a escolha dos Vereadores de Manaus.
A implantação do Código Criminal, e o Decreto de 13.11.1832, elevaram Manaus a condição de Vila e cabeça de Comarca, definindo-lhe, por isso mesmo, a obrigatoriedade de Câmara própria. Tal diploma legal, aliado, à carta-censura do presidente da Província do Pará aqui recebida, recriminando o parlamento de Serpa pelo não cumprimento da Lei de 1828, modificaram os rumos políticos da Vila recém-criada.
Desta forma a 17 de dezembro de 1833, atendendo exigência da Lei foi realizada a votação para escolha da primeira Câmara Municipal de Manaus, em processo eleitoral presidido por Joaquim Rodrigues Callado na sede da Fábrica Imperial, antigo edifício da fábrica de panos de algodão e sede de todas as manifestações cívicas e nativistas de 1821, 22 e 23. Edificada por Lobo d’Almada ao tempo do seu venturoso governo, foi inaugurada com 18 teares e 10 rodas de fiar com 24 fusos cada uma (2). Tudo transcorreu na mais perfeita ordem.
Entre grande número de pretendentes (3), foram quarenta e cinco os mais votados, dos quais saíram sete eleitos. Manoel Gonçalves Loureiro, filho, e Francisco Gonçalves Pinheiro com 36 votos, Mathias da Costa, 31, João Ignácio Rodrigues do Carmo (4), 28, Francisco de Paula da Silva Cavalcante, 27, Henrique João Cordeiro e Cláudio José do Carmo com 26 votos cada, foram integrar o período inaugural do Senado da Câmara de Manaus.
Na forma da legislação vigente, lançada a sorte entre os dois mais votados, foi Presidente da Câmara o abastado comerciante Manuel Gonçalves Loureiro, filho, ficando o segundo Francisco Gonçalves Pinheiro como seu suplente, ou seja, Vice-Presidente, posição em que dirigiu várias sessões.
Eram figuras destacadas como Henrique Cordeiro que era Capitão da Guarda Nacional e foi, tempos antes, do movimento de 1832, Secretário dos negócios Civis e Políticos do Conselho que governou a Barra; Cláudio José do Carmo chefe político que integrava a equipe de governo de Joaquim do Paço (1818/1821); e Francisco de Paulo que, logo depois, em 1835, pregaria uma resistência armada contra o Pará pela autonomia amazonense. Outras figuras de escol conforme os registros da ata de eleição não conseguiram votos suficientes para integrarem a Câmara, como o Padre João Antônio da Silva, Manuel da Gama Lobo d’Almada e Bonifácio João de Azevedo (5).
Consumada a eleição, às vésperas da implantação da nova ordem política na vila de Manaus, na madrugada de 19 de dezembro o Comandante Militar da Comarca do Alto Amazonas, Gaspar Vieira Cordeiro que substituíra ao Capitão Pedro Hilário Gurjão, exercendo as funções de forma ditatorial, violenta e abusiva com a população, fugiu para Belém acompanhado do alferes João Monteiro de Pina levando as lideranças do lugar a se reunirem de forma emergencial, coordenadas por Joaquim Rodrigues Callado para analisar os fatos e expedir orientação a população desguarnecida da autoridade militar, mas, naturalmente, satisfeita com o fato. A essa reunião compareceram todos os Vereadores, o Juiz de Paz Antônio Dias Guerreiro (6) que anunciou a boa nova, e muitas pessoas de alto prestígio na sociedade local.
Sabe-se que, por este gesto, Gaspar Cordeiro que aqui chegara nos primeiros dias de 1833, foi censurado na Fala Presidencial ao Conselho de Belém, pelo presidente José Joaquim Machado de Oliveira (7) e, denunciado pela Câmara de Manaus, por ato de covardia, respondeu a Conselho de Guerra do Pará.
Superado o transtorno, urgia instalar a Câmara.
Assim, a 21 de dezembro de 1833 foi realizada a sessão solene de instalação da Câmara de Manaus e do Município, com a posse do seu primeiro corpo de Vereadores, na Fábrica Imperial edificada em terreno onde se encontra o IPASE. Por tão significativo evento a antiga Barra ficou em festa cívica com as casas iluminadas por três dias como era de hábito nestas ocasiões.
A missa soleníssima custou aos cofres públicos 26$000, e foi celebrada pelo Frei José dos Inocentes – destemido defensor da nossa autonomia, já designado Vigário Geral. A catedral era uma igreja construída à moda jesuíta, “ligeira, frágil e destituída de arquitetura…” (8), no Largo da Trincheira, depois Praça IX de Novembro, com a fachada voltada para o Rio Negro, nas imediações de onde se encontram a rua do Visconde de Mauá e a avenida Sete de Setembro, contígua ao atual prédio do Poder Legislativo municipal.
Não era mais a igrejinha construída pelos Carmelitas calçados de que nos dá notícia o Padre José Maria Coelho em sua “Memória Histórica da Capitania de São José do Rio Negro” (9), mas a reedificada e ampliada por Lobo D’Almada, com forro de madeira, coberta de telha e adornos condignos. Era um prédio de madeira de lei com um bem arranjado trono e uma bela tribuna sobre o altar-mor onde estava colocada, sob um docel, a imagem de Nossa Senhora da Conceição a contemplar as duas trinas laterais destinadas ao governo e à música. De suas oito janelas se podia ver a cidade, ao largo, em grande parte, e por elas fugia em harmonioso concerto o som do realejo que servia às funções sacras. Ao lado, a convocar os fiéis, em torre de madeira, o sino repicava em regozijo público pelo notável fato.
Postos em destaque, alvo das atenções do povo, ali estavam os novos Vereadores, os primeiros escolhidos pela população de Manaus depois de longos anos de espera. Todos contemplavam com olhos de crença e fé a pedra mármore bem polida da pia batismal como a inaugurar novo momentos em suas vidas, e viam na imagem da padroeira, adornada com manto de seda e coroa de ouro, a força que os mantinha unidos em busca da autonomia definitiva do Rio Negro.
Era dia de gala. Ao tempo do sacramento da comunhão, Frei José lançou mão da custódia de prata dourada rodeada de topázios e ofereceu a todos com as palavras que vencem os séculos e bendizem os homens na consagração religiosa. Ao lado do altar compondo com rigor tão vetusto e simplório templo, uma âmbula de prata guardava os sonhos óleos e a naveta portuguesa servia com incenso os turíbulos de requintada prata colonial que adornavam a Sé.
Foi, com todos os rigores, celebração importante para a época.
A primeira reunião de trabalho foi a 3 de janeiro de 1834, tratando-se da composição dos novos quadros da administração pública que a Câmara deveria ter mediante indicação ao presidente da Província, no Pará. Deveriam ser vultos preocupados com a autonomia amazonense. Os novos cargos, obrigatórios para a complementação da Vila e Termo de Comarca, determinados na Lei, foram então ocupados por antigos líderes de movimentos autonomistas, Vereadores ou candidatos ao pleito inaugural da municipalidade. João da Silva e Cunha (10) e Henrique João Cordeiro foram indicados respectivamente para Juiz de órfãos e Juiz Municipal em Ofício de 14 de Janeiro, cuja aprovação se deu em 23 de abril pelo presidente Bernardo Lobo de Souza (11). João Cordeiro foi depois Juiz de Direito e Chefe de Polícia, empossado a 26 de julho do mesmo ano. Para Promotor de Justiça foi indicado em 18 de janeiro, Francisco Alexandre Leite, nomeado em 9 de maio do mesmo 1834, todos por conseguinte, integrantes dos grupos libertários.
A Câmara e os corpos administrativos do Município deveriam concorrer para a completa autonomia política que todos esperavam, consumada anos depois em 1850, inclusive trazendo para a capital o primeiro jornal a circular com alguma regularidade, embora editado em Belém. O “Publicador Amazonense”, dirigido pelo Cônego Batista Campos.
NOTAS
(1) in Mário Ypiranga Monteiro. Fundação de Manaus. 2ª ed. Ed. Conquista. Rio de Janeiro, 1971.
(2) in Arthur Cezar Ferreira Reis. Manáos e outras vilas. Rev. IGHA, ano 3, vol. 3, 1933. Phenix. Manaus.
(3) Além dos eleitos, foram votados: João da Silva e Cunha, 25, Antônio Dias Guerreiro, 22, Pe. João Antônio da Silva, 18, Aniceto da Silva Craveiro, 14, Martinho Joaquim do Carmo, 14, José Antônio D’Oliveira, 12, Manoel da Gama Lobo D’Almada, 12, Alexandrino Magno Taveira Pao Brasil, 11, Gregório Naziazeno da Costa, 10, Jerônymo Conrado de Carvalgo, 10. João de Souza Coelho, 8, Antônio José Trindade Barroso, 7, Francisco de Paula e Matos, 7, Manoel de Sena Marques e Bernardo Francisco de Paula, 6 cada um, Paulo Luiz de Matos, João Pedro de Faria com 5 cada, Manoel Antônio Freire, Antônio Pereira de Castro, João Bernardes, com 3 cada, Gregório da Silva Craveiro, Francisco Alexandre Leite, Joaquim José Anvers, Guilherme Ferreira Gomes, Francisco José Gomes, Bonifácio João de Azevedo, Antônio Picanço, todos com 2 cada, Francisco Antônio Coelho, Joaquim Gonçalves Pinheiro, Manoel Pereira Gomes, José Casemiro Ferreira do Prado, Vitório José Bernardes, José Joaquim Vitório da Cosa, José da Roza, Francisco de Souza Coelho, Leonardo Ferreira do Prado, Albino Correa, todos com um voto cada.
In Arthur Cezar Ferreira Reis, ob. cit., conforme Ata firmada pelo Secretário da Câmara Jerônymo Afonso Nogueira, fls. 75.
(4) João Ignácio Rodrigues do Carmo foi depois vice-presidente da Província do Amazonas, desde 1851, na condição de 4º Suplente, exercendo o mandato em 09.09.1867 a 25.09.1867, constituindo-se ao longo de todo o período em um dos cinco amazonenses que exerceram tão relevante função.
(5) Foram figuras proeminentes. Manuel da Gama Lobo D’Almada como o melhor governador da Capitania com grandes feitos pelos seu desenvolvimento. Bonifácio João de Almeida foi Secretário da Junta de 1821 e depois presidente em 1823. Amazonense de Barcelos, era letrado, rico e influente. Morreu assassinado.
(6) Antônio Dias Guerreiro era Juiz de Paz, proprietário e comerciante em Manaus.
(7) José Joaquim Machado de Oliveira foi presidente do Pará de 27.02.1832 a 04.12.1833. Paulista de nascimento, foi apoiado pelo Partido Filantrópico.
(8) in Lourenço da Silva Araújo e Amazonas. Dicionário da Comarca do Alto Amazonas. Grafima. Manaus, 2ª ed. 1984.
(9) in pe. José Maria Coelho. Memória Histórica da Capitania de São José do Rio Negro. Rev. IHGB, vol. 203, 1949, fls. 122/123. Rio, Imprensa Oficial.
(10) João da Silva e Cunha foi Vereador de Serpa, membro da Junta de 1821 e vulto da Adesão em 1823.
(11) Bernardo Lobo de Souza foi presidente do Pará de 04.12.1833 a 07.01.1835, criando o jornal Correio Oficial Paraense. Integrava a Maçonaria brasileira e foi o 8º presidente da Província.
O jornal surgiu no período de 1834, tendo como redatores Silvestre Antunes Pereira e João Batista Gonçalves Campos. Era jornal político, literário e moral editado em Belém na Tipografia Philantrópica e Tipografia dos Verdadeiros Liberais. O 1º número é de agosto de 1832 e o último é de setembro de 1834.
BIBLIOGRAFIA
BRAGA, Robério. Coronel Zany. Manaus, 1991 (inédito).
COELHO, José Maria, Pe. Memória Histórica da Capitania de São José do Rio Negro, Rev. IHGB, vol. 203, 1949, Rio, Imprensa Nacional.
MAW, Henrique Lister. Narrativa da passagem do Pacífico ao Atlântico, através dos Andes nas Províncias do Norte do Peru, e descendo pelo rio Amazonas até o Pará. ACA, 1989. Edição fac-similar.
MIRANDA, Bertino de. A Cidade de Manáos sua história e seus motins políticos. Manaus, 1908.
MONTEIRO, Mário Ypiranga. A Fundação de Manaus. Ed. Conquista, Coleção da Academia Amazonense de Letras. 1971, Rio de Janeiro, 3ª ed.
REIS, Arthur Cezar Ferreira. História do Amazonas. Manaus, 1931.
REIS, Arthur Cezar Ferreira. Manáos e outras vilas, Rev. do IGHA, ano 3, vol. 3, nº 1 e 2, 1933, Tip. Phenix, Manaus, 1933.
SPIX e MARTIUS. Viagem pelo Brasil. Tomo III. Edições Melhoramentos, 2ª ed. s/d.
PASQUETE Di Paolo. Cabanagem – a Revolução Popular na Amazônia. Ed. CEJUP, Belém, 1990.